Naquela noite, a lua se derramava em prata nas terras
do Paquiçamba. Noite de lua cheia,
clareando a imensidão... A ela se unia o canto do uirapuru, agudo e
triste, varando o adentro-fora da mata, penetrando as entranhas do mundo. Ao seu canto, dançavam serenas as águas do
Xingu, serpenteando por terras indígenas e ribeirinhas tantas... Em alguns
trechos, revoltas cachoeiras, metiam medo em qualquer um.
Na aragem dos ventos, o assombro e o espanto corriam
soltos, afinal chegara a verdade. A passos largos, chegara. Impossível escapar.
Não adiantaram protestos, indignação, nada... A construção da usina, já não era
mais uma lenda, pois os primeiros sinais da obra tornavam-se evidentes, mudando
o cenário e a rotina local. Logo, logo, o Grande Rio inundaria tudo por aquelas
bandas, matando bichos, plantas e gente _ um montão. Em suas profundezas
dormiriam submersas culturas, lendas e cantigas. O que não fosse inundado, também estava deveras ameaçado. Apenas a Mãe D´água guardaria em seu
reino, tudo quanto por ali fora um dia. Era o tal progresso – diziam. Por isso
a floresta gemia e cantava triste o
uirapuru. Tudo medonho demais! Bichos fugiam, buscando abrigo. Gente partia,
ao deus dará.
Sem eira, nem beira, eu também partia, naquela balsa
lotada, quase sem espaço... Eu me
ajeitei num canto, enrolando um cigarro. Foi neste momento que de mim se aproximou um índio juruna. Ele
trazia cinzas e sepulcros no olhar. Contou, envergonhado, que era filho de um
cacique que se vendera aos brancos, dividindo toda a tribo. Revoltado, rompeu com o pai e agora ia buscar
seu destino, aonde, sabia não... Tirou do embornal uma flauta de bambu e por
instantes, tocou canções de seus ancestrais. Depois pegou um cachimbo na
algibeira e me disse:
– Moço, deixa seu cigarro, fuma meu cachimbo. Dentro
dele erva poderosa, clareia visão.
Tragando fundo, fumei a erva, juntamente com o índio.
A fumaça ziguezagueava no ar, com seu cheiro exótico, se espalhando na
embarcação. Não demorou muito e
outros se juntaram a nós, partilhando as
imagens. Quem não quis fumar, simplesmente foi para outro lugar, sem
reclamações.
Ali se encontravam índios de várias tribos, algumas, inimigas seculares entre si.
Mas agora, todos dividiam a mesma sina; qualquer rixa antiga tornava-se volátil,
puro éter exalando ao vento. Besteira qualquer briga ali, besteira...
Outros eram moradores das palafitas,
pescadores, extrativistas.
Igualmente, dependiam da floresta e de suas terras foram expulsos, como
cão sem dono.
Quem foi indenizado, recebeu coisa pouca, mal daria
para sobreviver, aonde quer que fosse. Cada um carregava consigo a certeza:
para as novas reservas concedidas pelo governo, ninguém ia não. Lá a vida seria difícil em demasia. Sem sombra
de dúvida, a Belo Monte faria de muitos deles forasteiros a vagar...
A balsa rompia madrugada adentro, de espaço em espaço
aportando rápido, apenas para deixar ou apanhar passageiros. Num alto mastro
tremulava uma bandeira gasta, com um nome bem grande: Esperança – eis o nome da
embarcação, velha e enferrujada. Nela embalávamos os sonhos tão mirrados, junto
a tralhas e alguns míseros tostões. Sob
o clarão da lua, a Esperança deslizava apitando alto, antes de cada parada,
acordando o que em nós adormecia trancado. Talvez isto fosse o único sinal de que em nós a vida ainda habitava.
Teimosamente.
Adeus! Adeus!... Acenavam-nos castanheiras,
seringais, igarapés, povoados e ilhas
xinguanas... Vez ou outra se ouvia um suspiro fundo ou o soluço de alguém. A
maioria das crianças e mulheres dormia mal acomodada. Somente poucas mulheres
permaneciam acordadas, tentando em vão animar a nossa noite, com risos e
provocações.
Das águas, histórias espocavam brumas, em línguas
diversas, embaçando o entendimento. E em mim respingavam encantamentos,
encharcando-me, enluaradas. Traziam gosto de castanhas, guaraná e açaí. Em outras reluziam peixes e escamas se debatendo no arpão.
Também a fome, o riso, o grito... Ouvir e contar histórias, este era o jeito de
espantar nossos fantasmas e sentir que a vida ainda valia qualquer coisa, mesmo
que fosse um fiapinho de quase nada.
Lentamente desfalecia a madrugada, enquanto uma
senhora debulhava um terço e um pajé
delirava outras viagens. Com o juruna, conversei quase toda a noite e já me sentia íntimo o bastante, para lhe
perguntar o nome. Das cinzas e sepulcros, ele me respondeu:
– Messias. Meu nome é Messias. Mas índio juruna gosta de chamar Yudja.
– E o que quer dizer Yudja?
– Dono do rio. A gente é dono do rio...
A fumaça impregnada no ar deixava a cabeça leve e o tempo boiava suspenso, em claraboia
de água e luz. Até que pouco a pouco, os primeiros raios de sol douravam as
planícies. Densos de aurora, desembarcamos na última parada. Ao todo, éramos
quase uns cem, os sem destino, contemplando, quem sabe,
pela última vez, aquela paisagem.
A fome apertava e imprevisível era a jornada. De nossas matulas dividimos o de
comer e beber, priorizando as crianças. À sombra de um cupuaçu, nos esperavam
paus de arara, em péssimas condições. A gente se ajeitou como pôde, ao sabor da
sorte, seguindo viagem por um trecho de terra batida e esburacada. Não demorou
muito e surgiu à nossa frente a Transamazônica: comprida, misteriosa. Nela nos
aventuramos de corpo e alma. Intenso era o momento! Quanto mais estrada se
ganhava, mais aquela gente perdia:
identidade, linhagem, nome... Quase tudo, estirado no caminho.
Finalmente chegamos a Belém, de onde cada um seguiria
seu rumo... Antes de partir, abracei forte Yudja. Esboçando um sorriso pálido, ele me desejou
boa sorte e me presenteou com sua flauta. Assim nos despedimos.
Já faz algum tempo que tudo isso aconteceu. Desde
então as noites enluaradas refletem em mim estas lembranças e ouço ao longe o
canto do uirapuru... Assim vislumbro a Esperança e sua gente, especialmente Yudja.
Tudo isso virou neblina, ofuscando meu olhar...
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